Os cidadãos imigrantes lusófonos têm, em Portugal, “conflitos diários” com situações básicas de direitos do consumidor, com os serviços de telecomunicações, a água e a electricidade a liderarem as queixas, revelou a representante da DECO na organização de consumidores de língua portuguesa.
Estes imigrantes são “vulneráveis, em termos de conhecimento”, pois apresentam “uma literacia sobre direitos dos consumidores, digital e financeira baixíssima”, disse Graça Cabral, a representante da Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor (DECO) na Organização Internacional de Consumidores de Língua Portuguesa (Consumare).
A organização é composta por associações dos direitos dos consumidores de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Macau e Timor-Leste.
Adiado pela pandemia, o projecto “Direitos dos Consumidores Migrantes” partiu da constatação de que estas populações “têm uma vulnerabilidade muito grande, que é a falta de conhecimento dos seus direitos como cidadãos, mas também das regras e da legislação”.
Graça Cabral recorda que se trata de pessoas que mudaram de país e, apesar das semelhanças da língua lusófona, se deparam com grandes diferenças.
“O migrante tem vergonha, sente-se fragilizado e com preocupações que eu julgava que já não havia. As pessoas têm medo de ser maltratadas”, sublinhou.
Aproveitando o apoio que as associações dão a estas comunidades, ajudando-as muitas vezes nas mais elementares funções, como o preenchimento de formulários, procura de casa e emprego, encaminhamento para serviços, a Consumare decidiu começar precisamente por estas organizações, explicando-lhes os direitos que são de todos.
“Um consumidor informado é mais consciente e menos vulnerável”, indicou a representante da DECO, sublinhando que estas organizações que apoiam os imigrantes são as primeiras a se aperceber da sua vulnerabilidade, que depois se traduz em conflitos que não sabem resolver.
Por outro lado, adiantou Graça Cabral, os técnicos destas associações também precisam de uma actualização dos seus conhecimentos sobre áreas como a habitação, nomeadamente ao nível dos contratos e da legislação vigente, e é esta informação que a Consumare proporcionou através da realização de várias sessões de formação.
Os conhecimentos adquiridos por estas associações vão agora ser expandidos para as comunidades que apoiam, de modo que ninguém fique sem saber dos seus direitos e todos saibam como os podem reclamar.
E não faltam áreas onde agir. As telecomunicações lideram as queixas – como acontece a nível nacional -, com contratos feitos por telefone, com fidelizações, refidelizações e sobreposição de contratos. Mas também existem muitos conflitos com os serviços básicos como a água, gás e electricidade, nomeadamente ao nível dos contratos.
“Como se contrata, como é que funciona o contrato de fornecimento de luz, gás e telecomunicações, o que é a prescrição, o que é a factura e como ler a factura, as questões básicas de arrendamento, os direitos dos arrendatários, problemas com as práticas comerciais desleais” são algumas das intervenções alvo.
Segundo Graça Cabral, “estes consumidores são muitas vezes agarrados em contratos feitos porta a porta – de luz e telecomunicações – e têm pouquíssima informação sobre as cláusulas contratuais”.
Um cenário que se repete no relacionamento com os bancos, com muitos imigrantes a desconhecerem a possibilidades dos seguros com que se podem proteger em situações de crédito, e ao nível do arrendamento que é “um grande problema”.
As comunidades cabo-verdiana, guineense e brasileira são as mais retratadas pelas associações, o que Graça Cabral acredita que se deve ao facto de serem as maiores em Portugal.
“O problema está no exercício desses direitos, no conhecimento dos direitos do consumidor. Apesar da língua ser portuguesa há diferenças, dificuldades de adaptação, hábitos alimentares, situações que levam a que os direitos não cheguem a estes consumidores”, mas também matérias muito práticas do dia a dia, relacionadas com vistos, estudo, integração nos bairros.
“As pessoas não sabem sequer que podem reclamar, quanto mais reclamar”, disse Graça Cabral.
Depois das sessões de formação, que terminaram no passado dia 29 de Setembro, a segunda fase do projecto arranca agora com a edição do guia “Como sobreviver enquanto consumidor imigrante” que será distribuído por todas as associações que trabalham com as comunidades migrantes.
Depois, serão estas organizações a “capacitar os seus imigrantes sobre os seus direitos”, de modo a torná-los “cidadãos mais seguros e sem receios”.
A presidente da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste), que actualmente assume a presidência da Consumare, enaltece o pioneirismo deste projecto que tem a grande vantagem de permitir às organizações que trabalham com os imigrantes “exercitar, desenvolver práticas e passar para os outros” os conhecimentos adquiridos nas formações.
O objectivo é “integrar as comunidades nas relações de consumo português, para que possam conhecer os seus direitos” e ter um maior “conhecimento de legislação relacionada com o consumo”, disse Maria Inês Dolci à Lusa.
E acrescentou: “Todo esse projecto foi pensado para esclarecer, dar informação, para que possam, a partir desse conhecimento, assumir o seu papel como consumidores activos na sociedade, na economia portuguesa”.
Em Angola, além do direito do consumidor ter consagração constitucional, o Executivo criou a 25 de Julho de 1997 o INADEC – Instituto Nacional de Defesa do Consumidor, para concretizar políticas do Governo nesta matéria, acautelando direitos e interesses, dissuadir a prática de infracções, sensibilizar e até afastar situações que periguem a qualidade de vida e a saúde do consumidor.
Em Março deste ano, presidente da Associação Angolana dos Direitos dos Consumidores (AADIC), Lourenço Texe, defendeu a revisão pontual da Lei sobre os Direitos dos Consumidores, por ser alegadamente “muito dura” nas penalizações aplicadas contra os proprietários dos estabelecimentos comerciais.
Lourenço Texe, que falava à Radio Nacional de Angola, por ocasião do Dia Internacional do Consumidor (15 de Março), disse ser a favor da aplicação de multas, entre altas e severas, em detrimento do encerramento dos estabelecimentos comerciais pela infracção, como estabelece a Lei.
“Já vi muitas vezes estabelecimentos comerciais a serem encerrados, quando se podia primar por outros tipos de sanções, feitas na base das multas entre altas e severas para desencorajar o fornecedor de bens ou o prestador de serviços a violar sistemática, o direito do consumidor, como acontece no país”, defendeu Loureço Texe.
De acordo com o responsável, a Associação Angolana dos Direitos do Consumidor recebe, em média diária, 20 reclamações de consumidores de vários estratos da sociedade, que aos poucos vão ganhando mais consciência jurídica.
O Dia Internacional dos Direitos do Consumidor é assinalado anualmente em resposta às preocupações do então Presidente dos EUA, John Kennedy, que, no dia 15 de Março de 1962, dirigiu uma mensagem ao congresso do seu país, na qual defendeu, pela primeira vez, os direitos do consumidor.
Folha 8 com Lusa